Projeto prevê concessão de área histórica do Recife à gestão privada e gera debate sobre patrimônio e especulação imobiliária; entenda
04/11/2025
(Foto: Reprodução) Projeto da prefeitura prevê concessão de parte do Centro do Recife à gestão privada
Uma importante área histórica do Centro do Recife, que guarda algumas das "joias" arquitetônicas da capital mais antiga do país, incluindo 35 quadras com 14 imóveis no entorno da Avenida Guararapes e da Praça da Independência, pode ser entregue à gestão da iniciativa privada por 30 anos (veja vídeo acima).
Essa é a proposta do projeto "Distrito Guararapes", anunciado pela prefeitura, que prevê a concessão de parte do bairro de Santo Antônio sob a promessa de requalificar e reocupar uma localidade que, nas últimas décadas, passa por um processo de degradação e esvaziamento.
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O "Distrito Guararapes", desenvolvido com o apoio do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), contempla um perímetro urbano de 14 hectares, que serviu de cenário para filmes como "Retratos fantasmas", "Recife assombrado" e o representante do Brasil na disputa por uma vaga no Oscar, "O agente secreto".
Segundo a prefeitura, a proposta foi apresentada durante uma audiência pública no dia 29 de outubro. Também no último mês, a gestão municipal abriu uma consulta pública, pela internet, para receber sugestões da sociedade civil.
A sondagem termina nesta terça-feira (4). Depois disso, a proposta será encaminhada para análise do Tribunal de Contas do Estado (TCE).
Como vai funcionar?
A iniciativa prevê que o vencedor da licitação — que pode ser uma única firma ou um consórcio de empresas — deve investir um total de R$ 300 milhões em obras de requalificação e na manutenção urbana de uma área de 14 hectares, equivalente a 14 campos de futebol.
Além disso, a concessionária terá que reformar 14 imóveis sem uso — sendo a maioria objetos de espólio ou massa falida de empresas que quebraram — e que serão desapropriados pela prefeitura. Conforme a proposta, esses imóveis devem ter as seguintes destinações:
12 para uso residencial, com 873 unidades de cerca de 35 metros quadrados, que deverão ser comercializadas por meio do programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV);
um para uso comercial;
um para a construção de um edifício garagem.
A perspectiva é que o preço de cada apartamento fique em torno de R$ 310 mil. Além disso, 66% das residências devem ser ofertadas pela Faixa 3 do MCMV (para pessoas com renda familiar bruta mensal de R$ 4.700,01 a R$ 8,6 mil) e 34%, pela Faixa 4 do programa (até R$ 12 mil).
Em entrevista ao g1, o secretário municipal de Planejamento, Gestão e Transformação Digital, Felipe Martins Matos, disse que o direito à exploração imobiliária será a contrapartida oferecida à empresa pelos investimentos realizados no local.
"O poder público já entra de agora, dizendo o que é para fazer na área pública e o que é para fazer nos lotes privados nesses 14 edifícios. [...] A ideia é que a prefeitura faça uso do instrumento de desapropriação para tomar posse desses 14 imóveis e entrega ao concessionário que, com a renda com o lucro gerado do desenvolvimento imobiliário desses 14 imóveis, vai poder cobrir o investimento e manter as intervenções que vão ser feitas em área pública", explicou.
O secretário afirmou, ainda, que o modelo de concessão se baseia em exemplos de cidades de outros países, como Londres, Madri e Nova York, mas disse não ter encontrado nenhum outro projeto semelhante no Brasil.
Intervenção urbana
Já nas áreas públicas, estão previstas diversas intervenções, como:
melhorias no calçamento;
5 quilômetros de novas ciclovias;
novas estações de Bus Rapid Transport (BRT);
uma cinemateca;
um palco flutuante para apresentações culturais sobre o Rio Capibaribe;
mais de 200 quiosques de comércio de rua.
De acordo com a apresentação da prefeitura do Recife, todas as obras devem ser realizadas no prazo de seis anos. Depois disso, até o fim do contrato, a concessionária será responsável pela manutenção do espaço urbano, incluindo ações de limpeza e padronização visual dos pontos de comércio.
De acordo com o secretário Felipe Martins Matos, o projeto vai concentrar num único gestor privado os contratos que o poder público já mantém hoje com diferentes empresas para manutenção urbana. Ele também negou se tratar de uma forma de privatização.
"O espaço continua público, de acesso público. Por exemplo, hoje, nesses espaços, a prefeitura é responsável pela varrição, pela limpeza, pelo controle urbano, pela gestão dos quiosques. E, muitas vezes, a prefeitura faz isso com empresas terceirizadas e, às vezes, até funcionários terceirizados. [...] Isso agora estaria concentrado numa única empresa que, de certa maneira, teria todo o estímulo para que aquele espaço seja bem cuidado porque ela quer que aquilo ali seja bem cuidado, seja, de certa forma, agradável, para que ela possa vender as unidades habitacionais", afirmou.
Bairro de Santo Antônio, no Centro do Recife, guarda parte do patrimônio histórico da cidade
Reprodução/TV Globo
Especulação imobiliária e preservação
Apesar de ser anunciada como uma solução para uma área considerada degradada, que convive há anos com a falta de investimentos, imóveis vazios e violência, a iniciativa é vista com cautela por especialistas.
Para a historiadora Mariane Zerbone, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), um projeto de requalificação do bairro de Santo Antônio não pode desconsiderar a própria dinâmica da cidade.
"Precisa ter cuidado porque são várias camadas da capital mais antiga do país. Essa área é uma Zona Especial do Patrimônio Histórico. Então, todo o bairro está dentro dessa zona e precisa dessa atenção. A modernidade não é um problema para a preservação do patrimônio, mas precisa ser efetiva de uma forma que o mercado imobiliário não venha tomar conta dessa história", afirmou.
Um dos receios em relação à execução do projeto diz respeito à valorização dos imóveis e à especulação imobiliária no local, que pode tornar o custo de vida mais caro para as pessoas que já vivem no bairro atualmente.
Por isso, na visão do urbanista Pedro Valadares, professor de engenharia civil da Universidade de Pernambuco (UPE), é preciso que o projeto seja construído a partir da escuta da população.
"Todo esse processo deve ser aberto a uma participação mais ampla da sociedade para que a sociedade possa discutir de maneira mais próxima, para evitar que aqueles que já moram nesse local, têm vínculos históricos e culturais com o local, sejam expulsos", disse.
Projeto 'Distrito Guararapes' prevê requalificação e espaços culturais no bairro de Santo Antônio, no Centro do Recife
Prefeitura do Recife/Divulgação
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